Bárbara em Religare

Conversas com elas

Em uma conversa com sua mãe, Bárbara conhece as histórias de cura de sua avó Zuila, que usava a sabedoria das plantas e frutas para ajudar aqueles que a procuravam. Essas práticas, transmitidas de geração em geração, ressaltam a conexão familiar e o conhecimento ancestral. A narrativa revela como essa tradição de cura com a natureza influencia a vida cotidiana e promove o bem-estar, refletindo a importância do autocuidado e da resiliência em tempos desafiadores.

Transcrição

Bárbara: Tem a fé, né, que a pessoa, ela deposita ali pra aquela coisa acontecer, né, do jeito que ela quer, do jeito que ela espera, mas nós que também ela tinha alguma coisa assim, tipo um poder ancestral.

Mãe: Ela dizia que tinha um dom que veio do pai dela. O dom, sabe, a gente não… Ela não sabia se expressar direito, mas ela dizia que era um dom que o pai dela passou pra ela de adivinhar.

Porque às vezes ela não sabia, vinha aquele pensamento na cabeça dela, faz isso, pega essa planta, faz essa planta, faz isso. E ela dizia que vinha aquilo na cabeça dela como se fosse orientando o que ela devia fazer. E ela fazia, e ela foi aprendendo.

Mas ela diz que o pai dela era como se fosse um curandeiro. O pai dela, ele era descendente de africano. Os pais vieram muito jovens.

E ele tinha esse dom de curar também. Era o dom de cura que eles diziam. Quando eles morreram, a mamãe tinha três anos.

Quem passou todo o ensinamento pra ela e o que o pai dela fazia foi o irmão mais velho, que dizia que o pai falava que ela era a herdeira dele, do dom dele. Ela era a caçula. Ela era a caçula.

Então, ele disse que passava pra ela todo o dom dele, que o filho mais velho contasse pra ela quando ela tivesse na idade de saber que ela devia continuar com a missão dele de curar, de ajudar as pessoas. E assim ela fazia conosco. Nunca tivemos problema de saúde grave, nada, nada, nada.

A gripe, até a cebola é boa. Ela fazia cebola com açúcar. Ela levava ao fogo e fazia aquele xarope e dava pra gente.

Nunca precisamos de um médico. Quando criança, nunca. Porque ela sabia o que fazer pra curar a gente.

Com as ervas, com os banhos. Ela seguia uma orientação que ela recebia, tipo uma intuição, né? Era, uma intuição. Era intuição.

Ela dizia que ela começava, de repente vinha na cabeça dela, ela às vezes ficava preocupada sem saber o que fazer, sem saber que doença, porque que tá acontecendo. E aquilo vinha na cabeça dela e ela fazia e aquilo curava. 

Bárbara: Ela chegou a estudar, sim, pra escola? Ela não chegou a estudar.

Mãe: Ela sabia ler. O padrinho dela ensinou pra ela. Ele sabia ler, mas não sabia escrever.

A mamãe aprendeu a escrever depois conosco. Olha que engraçado, né? Que geralmente a pessoa aprende a escrever e depois a ler, né? Era porque ela foi, ela era proibida de saber, de ter esse conhecimento. Então, ela aprendeu a escrever, ela aprendeu a ler porque o padrinho dela ensinava escondido pra ela.

Ele era um juiz e quando ela ia no gabinete dele, no escritório dele, tinha muitos livros, ela tinha interesse e em poucas horas ele ia pra ela e ensinava. Mas não tinha tempo pra ensinar ela a escrever. E por que ela era proibida? Porque na época dela, quando os pais morriam, os filhos eram dados pros padrinhos criarem.

E a madrinha dela era muito a mulher da sociedade naquela época. Tinham filhas e a minha mãe foi e vivia como uma empregada. Minha irmã foi criada com ela, mas pra servir a família.

Então, ela dizia que a mamãe não podia saber mais do que as filhas. Ela tinha que, ela não tinha que saber, como é que se diz? Educação não devia ter esse tipo de educação. Ela tinha educação, ensinava pra outras coisas.

Pra cuidar da casa. Cuidar da casa. Pra ser útil.

E os irmãos dela mais velhos não cuidaram dela? Sim, o irmão mais velho, quando o pai morreu, o irmão mais velho tinha 13 anos. Também foi com padrinho. Com outro padrinho? Com outro padrinho.

Cada um foi distribuído pros padrinhos. E quando ele cresceu, que o pai disse, quando você inteira 18 anos, você recolhe os seus irmãos. O pai dele falou, quando eu morrer, eu quero que você faça isso.

Reunir os irmãos. Reunir a família. E ele fez.

Quando ele completou 18 anos, ele foi buscar todos os irmãos. De onde estavam, né? Aí resgatou. Resgatou.

A irmã mais velha dela já tava casada com 14 anos, 15 anos, assim. Já era casada, ele deixou. O outro irmão dela também já tinha família.

Bárbara: Tudo novinho, né? 

Mãe: Tudo novinho. Dezoito, dezessete, dezoito anos. Ela era a mais nova.

E esse irmão mais velho trouxe ela pra casa dele, pra cuidar dela. Ela tinha quantos anos quando ele resgatou ela? Ela tinha 13 anos. E ela conheceu o papai com 16 anos.

Casou e se mudou pra lá pro interior, pra lá pro Jari. 

Bárbara: Aí começou a família de vocês? Foi, aí começou a família. Aí ela começou a desenvolver esse dom dela.

Mãe: Foi. Mas, desde jovem, assim, com 13 anos, quando ela foi com o irmão dela, ela já tinha essa habilidade, sabe? Perguntava pra ela alguma coisa, aí ela falava. Ou não perguntava, ela dizia, faz isso que é bom.

Bárbara: Ela começou a desenvolver aquela intuição dela. Naturalmente. 

Mãe: Naturalmente, naturalmente.

Bárbara: Depois que ela tava aqui em Belém com o vovô, né? Que o vovô ficou muito tempo doente e tal. Foi. Que ela adquiriu o Alzheimer. Ela foi a primeira a falecer. E ela antes adquiriu um Alzheimer. Em algum momento ela lembrava dessas coisas, assim? De fazer, olha, para fazer isso.

Mãe: Lembrava. Em algum momento ela lembrava mais do passado do que do presente. Ela sempre lembrava do passado.

Lembrava as coisas que ela fazia. Mas aquilo por breves momentos, ela tinha aquelas lembranças. São os lápis, né? É. O que ela fazia.

Ela lembrava muito pouco. Mas ela lembrava. Em algum momento ela ficava como se estivesse lúcida.

Mas por pouco tempo. Quando eu via uma criança chorando, ela orientava. Ei, vê se não é cólica, vê se não é isso.

Tira a roupa do bebê, vê se ele não está com alguma formiga, alguma coisa. Porque está chorando. Ela dizia.

Dá um banho de ervas, ele se acalma. E o vovô ajudava ela nessas coisas? Ajudava, ele ajudava. Ele que ia cortar as plantas, às vezes ele que fazia, ia ferver.

Ele era, nesse ponto, ele era um companheiro dela. Tudo ele fazia, ele estava do lado dela para ajudar ela a fazer todas as coisas que ela queria. Ela pensava. “Não, assim não, assim.” E ela ensinava como era. E quando alguém falava com ele na rua, ele dizia que estava doente e tal.

Ele dizia “vai lá com ela, vai lá com a Zuila. Vai lá com ela, ela vai encontrar o remédio certo.”

Bárbara: E ela já cobrou por isso? Ela cobrava? 

Mãe: Não, nunca cobrou. Nunca cobrou nada, nada, nada. Quando queriam dar as coisas para ela, ela nunca aceitou. Ao contrário, ela ajudava as famílias, dando coisas.

Muita galinha ela tinha, ela dava. Mas ela nunca cobrou. Ela dizia que o dom que ela tinha, ela sempre falava do mesmo jeito.

O dom que eu tenho, que foi transmitido pelo meu pai, não se pode cobrar. Não se pode receber nada em troca. Ela estava, tipo, cumprindo alguma determinação.

Ela dizia que eu tenho uma missão, ela dizia. Em honra da memória do meu pai, ela dizia. Eu não posso fazer determinadas coisas.

Porque ele não fazia, ele também não cobrava. Ele também não cobrava nada. Mas ele tinha um dom muito forte, muito, muito.

Não só de curar, mas dele adivinhar as coisas. Tipo, as pessoas chegavam para perguntar sobre um roubo, sobre alguma coisa. Ele dizia, aconteceu assim, assim, assim.

Procure tal pessoa, assim. Ele tinha esse dom. Como se fosse assim, ele adivinhava, não sei como é que se chama.

E ele veio de onde, o teu avô? Ele vinha de onde? Disseram que ele veio muito pequenino com os pais da África. Os pais vieram como escravos. Mas ele era liberto já? Era, era.

Ele veio pequeno. Ele era, ele era, tinha liberdade depois. Eu não me lembro bem a história.

Porque ninguém gostava de comentar para a mamãe. Depois cresceu, o que o irmão contou. Porque ele contava toda a história dele.

Como ele conheceu a minha avó. O que levou ele a chegar nesse lugar. Que ele disse que não ia passar muito tempo.

E… É como se ele já soubesse que ele ia morrer em tal época, assim, assim, assim. E ele? E estava destruindo. Era.

E ele orientou o filho, o filho mais velho. Contando desde pequeno, que era o mais velho. Toda a história, porque ele dizia que a história dele tinha que passar para todos os irmãos.

Para conhecerem quem era o pai deles. E foi o que ele fez. E não tem um sobrenome ou um nome que chamava assim, que era conhecido? Conheci o avô.

Era o nome que deram para ele. Pequenino, deram o nome para os pais dele, né? Um sobrenome. Eles tinham um nome diferente, mas eu não lembro.

O sobrenome era leal. Deram esse sobrenome leal para ele. E dos filhos da vovó, assim, algum ficou com esse dom? Foi passado para algum filho? Não, ela dizia que ia passar para mim.

Eu digo, mãe, isso não se passa, sabe? Não existe mais isso. E ela sempre dizia, eu vou passar para… Eu não quero. Depois de um tempo, ela começou a pensar, a ter medo dos pensamentos e tudo.

E ela dizia, eu vou passar para ti. Tudo que eu souber, eu vou passar para ti. Só que eu não me interessava muito.

Aprendei as coisas que ela falava, porque eu era muito unida com ela. Eu sempre vivia com ela, para todo lado. E ela dizia, eu vou passar para ti.

Eu dizia, não, mãe, isso não existe mais, essas coisas. A gente já tem outras coisas. Aqui na cidade, né? É, na cidade, a gente já usa outro tipo de produtos e tudo.

Nunca me importei. Aí entrou essa cultura do fármaco, né? Da farmácia. E tu és a mais nova dos filhos? Não.

Eu não sou a mais nova. Mas como eu estava muito, era muito, assim… Interessada de estar com ela, de sair com ela. Ela sempre me chamava, desde pequena.

Para todo lado que ela ia visitar as amigas e tudo, ela me levava. E sempre ela contava histórias para mim. História do passado, história como ela fazia, história quando ela era criança.

Mas eu nunca tive interesse de aprender. Eu já dizia não, e mesmo as pessoas falavam. Ai, que coisa, sabe? Ficava falando de coisa de interior.

Elas falavam assim. Sempre coisas do interior. Muito preconceito.

Muito preconceito. Isso em que época, assim? Que ano? Não lembro. Em 60, no ano de 60.

Aqui em Belém. Foi. Então, ela começou a se anular.

Ela começou a se anular. Já não falava tanto. Algumas vizinhas, né? As comadres que ela falava.

Ainda vinham procurar ela para fazer alguma coisa. Ela fazia, mas não era mais como antes. Ela já não queria falar do que ela sabia.

Porque ela era, tipo assim, repreendida pelos próprios filhos até. Quantos filhos eram? Nove. Nove filhos.

Então, os filhos já diziam Ah, mãe, isso é do interior, sabe? Não fala isso e tal. E ela foi se anulando. Já não falava tanto.

Deixava. Ah, quero ir no médico. Quero tomar isso, tomar aquilo.

Ela já deixava. Mas tudo que ela me ensinou. Massagem, chás.

Eu fiz com vocês. Até uma certa idade, vocês… Não tinham problemas sérios de saúde. Porque eu ouvia o que ela dizia.

Olha, faz assim, faz assim. Dá isso. Ainda usei um pouco da sabedoria dela com vocês.

Com o Alexandre. Em Belém mesmo ainda tinha. Que eu me lembro que era pequena.

Ainda tinha, assim, coisa que ela plantava, né? Era. Tinha. Ela sempre tinha.

Lá no quintal. Era. Ela tinha.

Lá tinha. Ainda achei que a chá veio por Belém quando vocês vieram pra cá. Ainda tinha em Belém bastante essas ervas.

Tinha, tinha. Não, e ela plantava. Ela ia procurar os lugares.

Ela ficava procurando. Ela ainda encontrava. Muitos ela trouxe.

Ainda conseguiu trazer, mas vazio. Ela conseguiu trazer. Do interior pra cá.

Foi. Ela ainda conseguiu trazer muita coisa. Esse malvarisco.

Não, ela não tinha. Começaram a chamar malvarisco de amapola. Ela tinha amapola mesmo.

Amapola é o quê? Amapola eu não sei o que ela fazia. O que ela dizia que era uma coisa. Ela achava bonito aqueles copos.

Mas depois da minha adolescência eu aprendi que o pessoal pegava os copos de amapola, né? Que parecia aqueles bonitos, pra fazer chá. Era como uma droga. Ah, alucinógena.

Era. Mas ela gostava porque era bonita. Depois que nós… Depois já era.

Se a mamãe soubesse, credo, de fazer alguma… Mas ela chegou a fazer chá de amapola? Não, nada não. Nós que brincavamos dizendo que se ela soubesse ela ia fazer. Acho que dá um barato pra ela.

Mas ela tinha muitas plantas. O malvarisco ela dizia que era bom. Ah, não.

Era do tipo que, nessa época, pessoas magras não eram muito bem vistas. Então tinha que engordar um pouco. Então ela não usava o que dizia que o malvarisco era bom, que emagrecer e tudo.

Ela dizia, não, isso não é bom fazer, não. E se emagrece. E ninguém deve emagrecer, ela dizia.

Só quem tem calibre. Já nasce, emagrece, sempre emagrece. Não, ela dizia, não pode.

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